Friday, July 16, 2004

Comunhão

Quando chego a casa e não fui a ultima a sair dela, estafada depois de sete horas de minutas, pactos sociais, actas, contestações, petições e afins, deparo-me com o cenário dantesco de uma casa habitada por homens, leia-se machos.

A cama está por fazer e apresenta-se totalmente revirada provavelmente com as almofadas caídas no chão. O cesto da roupa suja tem meias e cuecas a espreitar muito embora, com um simples empurrãozinho, todas as peças se acomodem de forma bem menos visível. Há biberões espalhados com restos de leite, toalhetes na estante do quarto, água e marcas de sapatos no chão da casa de banho, toalhas despojadamente atiradas, tortas, desalinhadas. Janelas muito abertas e janelas muito fechadas. Há lixo no caixote a cheirar a fralda de cócó, há pelos de cão por todo o corredor, há brinquedos, também de cão, a povoar todo o espaço da sala…há loiça suja com restos de comida gordurentos. Com sorte há também uns sacos vazios do Aki ou da Worten espalhados pela sala. Com mais sorte ainda, esses sacos estão devidamente acompanhados de caixotes de cartão provenientes da compra de uma nova impressora, ou outro qualquer equipamento informático. Às vezes também há comboios ou aviões em construção em cima da mesa de apoio. Esta é em vidro e está invariavelmente pejada de dedadas.

Não entendo esta incapacidade masculina em compreender uma quantidade de pequenos nadas da organização e da partilha de espaços.

Depois das horas de trabalho, acompanhada de um bebé no carrinho que reclama agora para si a atenção devida e os cuidados de banho e alimentação que se impõem, “deposito” o citado bebé, de quem tenho saudades entenda-se, no parque, vulgo prisão, ou no berço. Encho-o de bonecos e de pianos chicco cujas melodias já sei de cor, e inicio a longa, rotineira e estupidificante tarefa Ajax.

Arranjo a cama, ponho-lhe as estúpidas almofadas que não sei porque as ponho já que em breve as vou tirar de novo, lavo o chão da casa de banho, mais uma vez estupidamente pois logo após estar imaculadamente lavado o cão entra com as patas sujas da rua e deixa a sua marca. Sigo para a cozinha, lavo e esterilizo os biberões, fervo a água para o próximo biberão, ponho a loiça gordurenta na máquina ( é claro que primeiro a lavo à mão, pois ao contrário dos homens já conclui que se não o fizer a máquina, que não tem umas maozinha lá dentro, jamais o irá fazer), passo com o lava-tudo-cheiro-a-morango-desinfectante-antí-calcário-amoniacal-ómega-três e o lava loiça fica um brinco. Segundos depois alguém se lembrou de vir lavar um componente de uma asa do aludido avião em construção…. Ainda na cozinha, lavo o chão. Desde que vivo nesta casa que quero mudar o chão para preto. “Longe dos olhos, longe do coração”, e este mosaico branco, além de piroso, consome-me a esfregona e a paciência.

Para a sala. Componho a mesa de apoio, isto obviamente sem de lá retirar as tais construções. Passo o pano do pó no ecrã da tv e das aparelhagens. Saco da vassoura e mando o cão para o terraço. Retiro da sala, quartos e corredores, uma pá de pêlos de cão. Saco da esfregona novamente, encho o balde com Completo. Lavo o chão. Ufa, consegui deixar o parquet sem marcas….pelos menos durante dez minutos vou conseguir ver a casa bonita, tipo anuncio de televisão. O bebé já está farto da melodia do piano. Eu também. Mudo-o de sitio. Se estava no berço vai para o parque, se estava no parque vai para o  berço. Dou-lhe uns beijos a cheirar a CIF.
Retiro a roupa da máquina, penduro a roupa. Entretanto, lá fora, homem e cão divertem-se a regar as plantas. Está um tapete na entrada da sala, mas o cão entra histérico a correr e afasta-o para debaixo do sofá. Adorou a brincadeira com a água da rega e passeia-se pela casa com as patas molhadas. Acabou o parquet brilhante.
Tenho de ir dar a comida ao bebé. A tarefa do jantar fica a cargo do Luís, que depois me deixará novamente os pratos gordurosos, as panelas com comida pegada, o chão sujo e os mil e um utensílios utilizados para lavar e meter na máquina ( para quê tantas colheres de pau!).

Os homens não compreendem as nossas rotinas. Não compreendem as nossas pequenas obsessões. Sim, eu sei que são obsessões: as toalhas da casa de banho direitas, a banheira lavada, a inexistência de cabelos espalhados pelo chão, a bacia muito brilhante, a roupa muito bem passada e pendurada ( com regras é claro: camisas e vestidos separadas de saias e calças. Cintos e acessórios diversos arrumados em gavetinha a eles especialmente destinadas…), as molduras de fotografias estratégicamente colocadas, as velinhas de cheiro bom a morango recentemente compradas na habitat que têm de povoar cada espacinho vazio, as almofadinhas coloridas a compor cada recanto, os cestinhos cheios de nada que ficam bem naquele espaço, as flores bem viçosas e regadinhas junto à janela da cozinha, os estores entreabertos a deixar passar o sol, mas sem que tal signifique que toda a casa esteja estoteantemente invadida dele, os brinquedos do cão arrumadinhos no terraço, os perfumes alinhados de acordo com as preferências acompanhados do cestinho dos brincos que me minuciosamente escolho de acordo com a roupa e a disposição do dia, os sapatinhos alinhados no canto do quarto, os brinquedos e a roupinha do bebé toda arrumadinha para não dar aquele ar de desmazelo inerente às casa com crianças.
 
Porra, e porque raios não és capaz de por um bocadinho de perfume no cão que lhe tire aquele cheiro de cholé que exala das patas? Levo o cão lá para fora, inicio a odisseia de o escovar. Corre, corre, louco, desenfreado, pensa que é tudo uma grande brincadeira. Consigo dete-lo, ou deteve-o o cansaço. Escovo-o…duas, três, quarenta vezes. Ponho-lhe pó de talco Klorane. Carissimo. Comprei-o para o rabo do Francisco mas vejo que este uso é bem mais proveitoso. Pelo menos tenho um cão que durante umas horas vais cheirar a humano pequeno…
Os machos lá de casa não me compreendem. Dizem ( nem todos falam, pois é!), que me perco em tarefas inúteis…a cama pode bem estar por fazer, os brinquedos espalhados, o chão mais preto que branco, o soalho de madeira mais manchado que um dálmata. O que interessa é usufruir da vida. Bebe-la, prová-la, saboreá-la.
Tá um fim de dia memorável. Lá for a cheira a terra, mar e praia. O puto tá lindo e dá uns gritos de alegria que se ouvem na vizinhança. O cão rebola-se e dá-nos brinquedos porque lhe apetece brincar. Ainda tenho que passar aquelas calças que quero vestir amanhã, devia ter lavado o cabelo e a conversa telefónica com a minha mãe foi mais curta do que esta desejava.
O Luís olha para mim e num simples afecto devolve-me a aura de princesa. Mesmo assim, cansada e com o ar de quem se sente culpada por ter gasto as duas ultimas horas entre panos do pó e Pronto dá brilho mas não lava tudo.
O miúdo tem os olhos brilhantes e cheira a azedo. Lá foram estão todos os meus machos a curtirem-se e a curtirem. Sem quererem saber de camas ou bacias, fraldas ou biberões, esterilizações, sopas ou camas para fazer, almofadas por colocar ou toalhas por alinhar. Estão alí apenas. A gozar aquele fim de tarde. Corre um brisa fresca… tudo o mais pode esperar.

3 Comments:

Blogger Hugo Santos - Portfólio said...

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6:53 AM  
Blogger Hugo Santos - Portfólio said...

Há pessoas que têm o dom de descrever o dia-a-dia como se fosse o ultimo livro de um qualquer romancista. Explicam tudo tim-tim-por-tim-tim, o que fizeram, por onde passaram, o que cheiraram, o que viram, ouviram, sentiram, etc, etc, e tudo ganha um briho semelhante ao dos olhos da música do Sérgio Godinho.

Eu, modestia aparte, tenho o dom de não-saber-rigorosamente-como-se-processa-esse-milagre e fico sempre com a sensação de ter uns dias incrivelmente enfadonhos, para além das conversas que muitas vezes são monossilábicas. Ex: Mãe - "que tal foi a festa?", Eu - "foi boa", Mãe - "hm... e estava muita gente?", Eu - "estava", Mãe - "hm...".
Tenho a certeza que dou atenção aos pormenores, ou não usasse eu óculos (chamam-lhes "óculos para descanso" eu digo que são só para o estilo... 0.25 de estigmatismo é o MÍNIMO DOS MÍNIMOS...), mas não tenho muito o condão de lhes dar uma narrativa suficientemente bela para que alguém possa usofruir deles.

Invade-me uma mini depressão.

Já passou.

Invade-me uma vontade incontrolável de dizer que gosto dos teus textos por serem tão plenamente aquilo que os meus não conseguem ser.

Já tentei elaborar diários, mas saiam sempre meio pseudo... poemas em prosa, prosa poética se diz, ninharias de falta de capacidade óbvia. Sim, sei que estuo a ser exagerado, mas porra! por vezes olho para os meus textos e parecem sempre muito longe do chão que piso. Parecem apenas longíquas paisagens que tentam representar a natureza morta que está aqui mesmo ao lado, prontinha a ser pintada.

Por favor diz-me que estou a exagerar! Preciso de subir o EGO! :)

Gosto do teu dia-a-dia porque, a avaliar pelo brilho que lhe dás quando o descreves, deve ser ainda melhor.

6:54 AM  
Anonymous Anonymous said...

Os homens passam algum tempo do seu dia a observar a sua fêmea, embrulhando-se na ideia do quão melhor seria o seu tempo (da fêmea) passado em são ou até obsceno convívio com o seu macho, em vez da sua obsessão sopeira.
De facto, a vida, ainda que quotidiana, deve manter o seu enfoque no seu único escopo relevante: a maximização do bem-estar da unidade de vida, só, familiar e alargada a relações de amizade.
A vida é para ser vivida e não lavada, limpa e arrumada.
A vida é para ser olhada para o lado e trazida para dentro.
Por outro lado, os machos também passam muito do seu tempo sem viver a vida, reparando ferros de engomar, transportando às costas e contruindo móveis e outros trambolhos quotidianos, passeando cães de quem as fêmeas têm medo, apagando luzes sempre acesas, desligando TVs acesas ao acaso, desligando PCs esquecidos, suprindo alheias tecno-inabilidades diversas e constantes, fechando torneiras intermitentemente abertas em quente, sempre inutilmente despejando água fria e notas de euro, enrolando mangueiras de jardim, ouvindo coisas que não têm que ouvir, esquecendo faltas de atenção, desculpando e compreendendo tudo, pois ao que parece, é universalmente aceite que assim é, conquanto ninguém os compreende nem lhes aceita tudo, tendo a sua vida escrutinada ao mm, e no fim de tudo, fazer boa cara.

Ele.

7:49 AM  

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