Tuesday, November 16, 2004

Curuminha

O trabalho tem-me roubado o tempo.
A constipação do petiz tem-me roubado o tempo, mas tem ao mesmo tempo concedido-me o tempo para ter tempo para brincar com ele.
Dormimos a sesta juntos, abraçadinhos.
Sinto-lhe o respirar e o hálito bem junto ao meu nariz.
O corpinho bem enrolado mergulha em sonhos de mundos que nem adivinho, mas que desejo sejam povoados de anjos carinhosos.
Em seguida gatinhamos juntos. Percorremos a casa numa histeria de novidades e, para mim, numa sempre renovada descoberta de pelos de cão nos recantos mais escondidos . Há toda uma perspectiva diferente do mundo visto daqui de baixo..!
Também passeamos um bocadinho naquela hora de fim da manhã em que o frio não é tão intenso e o sol nos presenteia com uma luminosidade que só por si me faz abençoar este país. E os dias correm lentos, plenos de cheiro a mustelas e afins. Com horas de muito riso, com horas de canções de embalar, com telefonemas que se despacham, com requerimentos que ficam por fazer, com um cansaço diferente e com um tempo que tendo escasseado me faz chegar ao fim do dia com um sentimento de missão cumprida que apenas poderá ir buscar a sua razão de ser ao facto de ser mãe. Intrinsecamente. Pelas veias, pelo ventre, pelo sangue, por aquela contracção, por aquele esforço de expulsão. Pelo grito final.
E hoje, naquele momento de ajeitar o cobertor, de dar o beijo e a festinha na cabeça, depois de um curso tirado com esforço, depois de todo o empenho na construção de uma carreira, sinto esta sensação unica de, mesmo que com alguma "amputação" profissional advinda da maternidade, chegar ao fim do dia e me sentir insuportavelmente feliz por ter conhecido um pouco mais o meu menino dos olhos azuis.


Por que cresceste, curuminha
Assim depressa, e estabanada
Saíste maquilada
Dentro do meu vestido
Se fosse permitido
Eu revertia o tempo
Pra reviver a tempo
De poder
Te ver, as pernas bambas, curuminha
Batendo com a moleira
Te emporcalhando inteira
E eu te negar meu colo
Recuperar as noites, curuminha
Que atravessei em claro
Ignorar teu choro
E só cuidar de mim
Deixar-te arder em febre, curuminha
Cinquenta graus, tossir, bater o queixo
Vestir-te com desleixo
Tratar uma ama-seca
Quebrar tua boneca, curuminha
Raspar os teus cabelos
E ir te exibindo pelos
Botequins
Tornar azeite o leite
Do peito que mirraste
No chão que engatinhaste, salpicar
Mil cacos de vidro
Pelo cordão perdido
Te recolher pra sempre
À escuridão do ventre, curuminha
De onde não deverias
Nunca ter saído"


Chico Buarque.


2 Comments:

Anonymous Anonymous said...

minha linda, hoje o teu post foi como um arco iris a chegar ao sopro.
vejo que estás bem e fico contente. beijocas grandes para ti e para o meu sobrinho de olhos azuis.

2:52 PM  
Blogger Deb said...

Cada vez gosto mais desse bicharoco gatinhante :)
Consulta o nove comentário do post "sesta"! Não sei se tens isso programado para te avisar dos comentários a posts mais antigos, por isso resolvi avisar.
Bj da sobrinha :)

6:41 AM  

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