Thursday, September 30, 2004

Escolhas

Ainda no outro dia o meu filho nasceu e já hoje, eu e o pai dele andamos a querer traçar-lhe o destino.
Os dois jovens, eu e o pai dele, saíram no outro dia dos respectivos locais de trabalho e aproveitaram a sua hora de almoço para percorrer e solicitar visitas e informações nos colégios em redor da afamada e “bemzoca” zona de Cascais.
Não, não fomos às escolas publicas. Sim, fomos aos colégios pejados de portões e porteiros, ginásios e espaços lúdicos. Têm cardio-fitness e judo, têm natação e campos de voley. Têm salas amplas e com luz, têm muitos wc´s e cantinas arranjadas sem mácula de gordura. Em alguns os miúdos usam farda e coitadinhos andam sempre de azul. Imaginei-me logo a querer vestir as minhas roupas mais giras para conquistar os rapazes e ter de ser obrigada a ir para a escola de saia de pregas, mas enfim, isso agora não vem ao caso.


Eu e o pai do meu filho não somos católicos. Somos ambos ex alunos de Escola Preparatória e Liceu Públicos e ambos ficámos com as respectivas maezinhas até irmos para a escola Primária. Também ela publica. Somos ambos meninos cujos tempos livres eram gozados na rua, respectivamente a jogar à bola, ele, a brincar ao elástico, eu.

Ambos entrámos na faculdade, ambos completámos os cursos superiores com sucesso e hoje até estamos bem na vida, especialmente se comparativamente ao infeliz quadro de desemprego e/ ou emprego precário que existe no nosso país. Pronto, secalhar poderíamos estar colocados como assessores de Governo ou da Caixa Geral de Depósitos, mas o facto de não termos frequentado a universidade católica ou o colégio São João de Brito, implicou que não fossemos hoje amigos de gente bem mais influente da nossa terra.

O que pretendo dizer com isto, é que eu e o pai do meu filho, assumidamente não católicos, não casados e sem filho baptizado, andamos, contrariamente ao que seria de supor, a fazer visitas a Colégios privados, cujo lema é “"Formar bons cristãos e honrados cidadãos".
Concordo com parte final do lema, e gostaria que o meu filho, se torna-se sobretudo um cidadão honrado. Estou.me marimbado para se o gajo vai ser Advogado ( Deus queria que não...), Engenheiro, artista plástico, carpinteiro ou médico, aí deixo-lhe o caminho aberto. As escolhas para um percurso de vida em termos profissionais, são para mim o espaço mais privado e subjectivo que existe, não pretendendo de forma alguma interferir nas decisões que o meu filho um dia venha a tomar.
Mas ele tem agora 9 meses e dos três anos até à idade da referida escolha, tenho de ser eu, ou antes nós, a escolher.
Tarefa difícil, talvez um da mais difíceis da maternidade/ paternidade. A necessidade de escolher e assim traçar ao meu filho um rumo, impor uma escolha que, se acaso ele tivesse voz e poder decisório, seria totalmente descartada e substituída por outra.

Mas voltemos aos Colégios.
Lembro-me que na minha escola preparatória e Primária, não haviam baloiços nem escorregas. O espaço verde era quase nulo, o ginásio tinha humidade, as salas eram geladas e exíguas, as cadeiras partiam-se e no refeitório a comida era intragável.
Lembro-me também que de vez em aquando os ciganos do bairro vizinho “assaltavam” a escola e nós, os meninos, tínhamos que fugir para dentro dos wc’s.. Raros e sujos.

Lembro-me também que havia muitos furos em que ficávamos para alí a brincar e que muitas vezes esses furos eram tantos que íamos para casa, onde, como é obvio, as nossas mamãs nos esperavam com lanches fabulosos e passeios no jardim.


No Liceu, também havia uns bancos onde se namorava e que outros tantos aproveitavam como poiso para fumar uns charros. Havia um porteiro, velhote e simpático que nos deixava sair sempre que queríamos e entrar sempre que não tínhamos aulas. Acho que o porteiro às vezes até dormia na sua barraquita.
Nessa idade fartava-me de faltar às aulas e só quando as faltas estavam quase no limite é que o meu pai recebia um cartão da Directora de turma. Tudo se resolvia com uma reunião. E depois no ano seguinte eu voltava a faltar...
Quando descia as notas, quando tinha negativas, ou quando andava visivelmente desmotivada para as aulas, ninguém, absolutamente ninguém me questionava sobre tal, como se o desmotivar ou as más notas fossem um acontecimento vulgar. Acho sinceramente que ninguém naquele local se importava com nenhum de nós.
Os professores também faltavam muito, para jubilo de todos nós, alunos.


Alturas houve em que no inicio do ano lectivo e até muitas vezes ao inicio do 2º período, não tivemos professor de uma determinada disciplina.
Mas mais uma vez ninguém se importava com nada.

Tinha dias sem aulas e nos dias de aulas regressava a casa ou aonde quer que me apetecesse ir, bastante cedo.
Como sempre tinha a minha mãe em casa, já não ía ao jardim, mas o lanche ainda me esperava.


Conheci de tudo no liceu, tal como sei que o meu filho vai conhecer seja lá no liceu, seja no colégio onde prometem modelá-lo como bom cidadão.
Sei também e desejo muito que ele brinque na rua, e vá ao jardim e eu, mesmo depois do trabalho lhe possa fazer muitos lanches. Também sei, também desejo, que me encha a casa de putos e fumem à janela, e namore no quarto dele e, se quiser, que feche a porta à vontade...


Mas sei também o que não quero. Não quero que o meu filho venha para casa sozinho com seis anos de idade, não quero que ele chegue a uma casa que estará vazia todo o dia e tenha sozinho de fazer o almoço num fogão aonde mal chega. Não quero que se sinta só, e não quero que se agarre todo o da á Playstation para matar a solidão. Não quero sentir-lhe o medo que eu sentia quando os ciganos assaltavam a escola. Não quero que chore porque não gosta da escola, como eu chorei porque tudo nela me provocava asco. Porque era feia e suja, porque ninguém olhava para mim, porque todos, e juro todos, os que lá davam aulas se estavam perfeitamente cagando para as criancinhas.
O que quero para o meu filho é uma escola onde o Sol invada as salas, onde, nem que seja um bocadinho apenas, os professores o tratem com respeito e atenção, onde haja uma cantina com cheiro a sopinha acabada de fazer, onde haja um ginásio sem humidade, onde haja um campo digno para ele jogar à bola sem o risco de lhe cair uma baliza em cima, onde haja muitos lápis de cor e muitos quadros de ardósia. Onde lhe ensinem matemática da forma diferente à que me (des)ensinaram a mim.

O que quero para o meu filho é que ele volte da escola e vá brincar para a rua e me chegue a casa cheio de lama, mas que depois disso, no dia seguinte quando acordar de manhã o faça com o mesmo sorriso que faz agora quando vai para a creche...e eu, e o pai dele, possamos confiar que naquelas horas em que trabalhamos, o nosso filho está num local acolhedor, tão acolhedor quanto a vida que lhe queremos oferecer.
Se ele vai ser bom cristão, se bom cristão for ser boa pessoa, se vai ser bom cidadão e se isto é ser boa pessoa, então gosto do lema...escrevia-o era de outra forma.


O meu pai andava na escola de Estremoz. Isto foi à cerca de sessenta anos. O meu pai tinha de percorrer quilómetros a pé para ir para a escola. O meu pai passava frio para ir para a escola e, chegado lá, se tivesse atrasado, ainda recebia a recompensa de uma boa reguada.
O meu pai, é hoje um bom cidadão e, creio eu pela luz do seu olhar, atingiu na vida todos os objectivos a que se propôs. Mas ainda hoje, por cada regresso a Estremoz, a voz do meu pai treme ao descrever a sua vida escolar.


Creio que o meu pai deseja outra coisa para o neto dele.




3 Comments:

Anonymous Anonymous said...

É. Agora deixaste-me a pensar...

2:57 PM  
Anonymous Anonymous said...

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Anonymous Anonymous said...

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